quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Janaina Martins - Spanish Guitar

Sobre a autora:
Janaina Martins
28 Anos
Maracanaú - Ce
"Se algo mais forte que o amor faltava ser sentido; se algo maior que o desejo faltava ser inventado, espalhem: eu já transcendi tudo isso!"


Spanish Guitar

Era noite do dia 30 de outubro e a sensação de solidão só aumentava o frio que me congelada desde aquela desilusão.
Não dava mais para ficar em casa. Tudo me lembrava aquele amor que só me fizera mal: o sofá dos beijos quentes, as paredes dos desejos furtivos, a TV dos momentos de calmaria... Sim, eu realmente precisava sair dali.

As ruas da cidade não diminuíam minha angústia. Todas elas pareciam quadros pintados com nossas cores, nossas cenas, nossas vidas.
Um turbilhão de pensamentos volvia minha cabeça não deixando que eu me desligasse daquela realidade intransponível: ele já não estava mais comigo.
Caminhei a esmo pela Beira-Mar até a exaustão.
Não sei bem que horas eram.
Parei.
Sentei-me na areia a olhar o infinito.
O mar não parecia maior do que a minha dor. O movimento das ondas me fez relaxar e então ouvi um som. Na situação em que eu estava aquilo nem me pareceu real. Pensei estar surtando de vez. Mas o som continuava.
Alguém estava tocando violão.
Mais um pouco e consegui discernir: era a música Spanish Guitar. Aquele som foi me invadindo até tomar conta de mim.

Como numa espécie de transe, caminhei à procura da origem de tão linda melodia.
Quando dei por mim, já estava diante dele.
Lindo.
É a única palavra que disponho, contudo, ela não abrange toda a sua beleza. Uma beleza jamais idealizada. Até mesmo o ego de Narciso seria ferido diante daquela visão.

Paramos por um instante e o silêncio que pairou em nossos olhares foi eloqüente. Ele tocou na minha mão e eu pude perceber que algo muito especial iniciava ali. Algo que me marcaria para sempre. Algo que mudaria a minha vida.

Gabriel. Esse era o nome do anjo que mudaria minha vida, mas só fui saber disso no outro dia, quando novamente nos encontramos, dessa vez, sem nenhum acaso. Conversamos sobre tudo, até mesmo sobre os nossos traumas de infância. Parecíamos nos conhecer desde sempre. Parecia que ele conseguia ler meus pensamentos. Parecia que as palavras eram totalmente dispensáveis. Perdemos a noção do tempo, do comum, do permitido. Ríamos alto, nos abraçávamos e ríamos de novo.
De repente foi nosso desejo que falou. Um gosto cor-de-rosa se espalhou pelo ar. O mundo parou.
Como numa cena de filme, não vimos mais nada. Naquele momento o universo inteiro era só ele e eu.

Nossos olhos se invadiram, nossos braços se envolveram num laço infinito, nossas bocas se aproximaram e consegui tocar o céu a bordo daquele beijo avassalador. Aquele momento não fora apenas mágico, fora eterno. Doravante a solidão não encontraria mais lugar em minha vida, seríamos um tríplice cordão: ele, eu e a felicidade.

A sucessão de dias começou a ser totalmente prazerosa. Éramos devotados a fazer com que o outro fosse o mais feliz possível. Visitamos lugares, conhecemos pessoas, inventamos coisas. Assim transcorreu o primeiro mês.

Foi só no início de dezembro que conheci a família do meu amado. Todos me trataram tão bem quanto eu nunca poderia imaginar. Agradeciam-me pela vida que eu estava devolvendo a ele, mas na verdade, a dimensão destas palavras eu ainda estava por conhecer.

No dia 10 de dezembro estávamos em sua casa quando Gabriel começou a sentir-se mal. Ele tremia muito, sua pele logo mudou de cor, a voz não saía - tudo o que ele conseguia dizer era que “estava doendo”. Entrei em desespero. Senti-me impotente, incapaz. Seus pais quando viram o que estava acontecendo correram e disseram que o tinham que levar ao hospital. Eu quis ir junto, mas eles relutaram. Pediram que eu esperasse ali mesmo enquanto voltavam e que procurasse me acalmar. Insisti, não obtive resultado. Foi a primeira vez que chorei desde que o conheci. Como eu poderia ficar calma, sem saber o que ele tinha? Apenas obedeci a ordem de esperar.

Ao retornarem os seus pais, Gabriel não estava com eles. Corri até a porta e perguntei, exigi explicações, notícias dele, sei lá, qualquer coisa que me fizesse entender tudo aquilo. Foi o meu sogro que começou me pedindo desculpa. – Desculpa, por qual motivo? – perguntei. Ele continuou dizendo que não deveriam ter deixado aquilo ir tão longe, mas em todos os 26 anos de Gabriel, nunca o viram assim, tão cheio de vontade de viver, e até mesmo acreditaram que o amor pudesse salvá-lo do destino terrível diagnosticado há seis meses pelo médico.

A essa altura da conversa eu já não queria adivinhar o final, mas era realmente como eu previa. Ele continuou:
- Gabriel tem uma grave doença e está vivendo os seus últimos dias aqui conosco.
Eu não queria acreditar. As lágrimas se tornaram torrenciais. Abraçamos-nos os três e um calor envolveu nossos corações, como se fosse o próprio Deus quem estivesse tentando acalmar-nos.
Depois de alguns momentos, já recuperados, minha sogra falou-me do desejo de Gabriel de que eu me afastasse e o esquecesse. Ele sabia do meu indizível amor, tão recente, porém tão imensurável, e era exatamente por me amar da mesma forma que ele não poderia admitir meu sofrimento ao vê-lo partir.
– Desculpem-me, mas esse direito ele não tem. Não posso apenas dobrar meu sentimento e colocá-lo no bolso. Não posso ser egoísta e me recusar a estar com ele nos momentos em que ele mais precisa de mim.
– Essas foram minhas últimas palavras antes de novamente nos abraçarmos e chorarmos copiosamente.

Sem que Gabriel soubesse, decidimos preparar um réveillon na praia. Uma festa para celebrar o presente que Deus nos dera ao deixar que ele fizesse parte de nossa vida.
No outro dia Fomos buscá-lo no hospital. Ele já estava bem melhor e de início não foi concordou com a minha decisão de não deixá-lo, mas vi em seus olhos um brilho incandescente que denotava toda a felicidade que meu gesto trouxera e o júbilo que seu coração sentia por ter-me ao seu lado.
Resolvemos que eu passaria alguns dias em sua casa (mas no meu coração, eu já tinha a convicção de que ficaria com ele até o último dia). Fomos buscar minhas coisas e juntos vivemos a melhor noite de nossas vidas.

Ao chegar em seu quarto, que tantas vezes eu já tinha visto, novamente aquele gosto cor-de-rosa impregnou o ar. Olhamos-nos e nada foi preciso dizer. Suas mãos percorreram o meu corpo, minhas unhas arranharam sua nuca, sua boca me enchia de prazer. Nossos corpos se procuravam numa avidez louca. Não queríamos mais perder um segundo sequer. Seus dedos me despiam habilidosamente, tocando-me de um jeito exclusivo: como jamais alguém conseguiu, despertando toda a luxúria que o comanda prazer carnal e nos obriga a querer mais. E eu queria mais. E nós queríamos mais. Queríamos nos consumir. Queríamos nos perenizar no corpo do outro. Queríamos nos amar completamente! E assim foi.

Nos amamos de uma maneira louca, como se aquele momento fosse a primeira vez de cada um de nós ou como se uma outra vez jamais fosse existir. Nem medo, sem receio, sem pensar no amanhã. Apenas nos amamos. Extremamente.
Adormecemos e quando acordamos já era manhã.
Estávamos exaustos, mas plenamente satisfeitos. Rindo ao vento. Ninguém entendia exatamente porque, ao sentarmos à mesa para o café, nos olhávamos nada dizíamos e começávamos a sorrir. Parecíamos malucos, crianças, sei lá.

Depois daquela crise, resolvemos não mais falar no assunto. Algumas vezes eu o sentia estranho, mas não perguntava para não fazê-lo sofrer.
Chegou então o dia 31 de dezembro. Conseguimos fazer, às ocultas, todos os preparativos para a festa na praia. Quando chegou a noite, o caminho até chagarmos ao local combinado exalava um certo mistério. Quando chegamos, qual não foi a surpresa de Gabriel ao ver tudo o que foi armado!

Todas as reentrâncias daquele local lembravam-lhe momentos de sua vida, e todos os seus amigos, mesmo os de infância e os que estavam distantes, fizeram questão de estar presente. Foi lindo. Cada segundo daquela noite foi explorado ao máximo. Todos os momentos foram intensos. Tudo ao redor resplandecia alegria.

A queima de fogos que preparamos, embora humilde, foi muito bela e festiva. Cores riscavam o céu e faiscavam nos olhos de todos os que contemplavam.
A noite então acabou e mais uma vez selamos nosso amor em um momento de total entrega íntima. Nos amamos ao alvorecer do dia e dormimos abraçadinhos.

Quando despertei, olhei para o meu amado, com um rosto sereno, contente. Toquei-o, mas ele não despertou. Meu amor já não estava mais ali. Era apenas seu corpo sem vida que me enlaçava naquela hora.
O que nos consolou foi saber que pudemos transformar em únicas todas as suas horas finais. E mesmo naquele estado, meu amor segurava um sorriso que denunciava, ele estava feliz.

Hoje é dia 01 de fevereiro. Minha regra já está atrasada há mais de uma semana e resolvi procurar um médico. Não existem palavras suficientes pra expressar a minha felicidade ao ver naquela maquininha de ultra-som que o nosso amor realmente não acabou! Dentro de mim Gabriel ainda está vivo e cresce junto com esse filho que Deus nos concedeu!

Acredito agora que Deus não manda seus anjos a Terra em vão e que ele não retornam para Ele sem cumprir a sua missão. Não foi a toa que eterno amor se chamava Gabriel, ele foi um anjo que Deus enviou para transformar a minha vida e mesmo a mim em algo melhor. E agora Deus me dá outro anjo que mesmo antes de chegar já está fazendo retornar a alegria para os corações órfãos com a perda de seu pai. Então, como poderia se chamar essa criança? Talvez Luz, Alegria, Felicidade, Bênção, mas certamente resumirei todas as dádivas em uma só: Gabriel ou Gabriela.

Agora é noite e estou novamente na praia. Naquele lugar em que vim procurando um abismo e um anjo carregou-me em suas asas. No mesmo lugar onde a solidão me caminhou para a felicidade. Aqui, onde há poucos meses conheci o amor e a razão de viver. Para onde olho, parece que ainda o vejo e novamente aquele gosto cor-de-rosa me invade. Sei que ele está aqui, comigo e nosso filho, pois ainda posso ouvir o som de seu violão tocando Spanish Guitar.